terça-feira, 20 de dezembro de 2016

180º aniversário da passagem e pernoita de D. Miguel em Alvalade a caminho do exílio.

Comunicação do Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz por ocasião da sessão solene comemorativa do 180º aniversário da passagem e pernoita de Dom Miguel I em Alvalade a caminho do exílio.

« (...) Permitam-me que felicite a Casa do Povo de Alvalade pela louvável iniciativa de assinalar a efeméride que hoje aqui nos congrega: a passagem da última noite em Portugal de El-Rei Dom Miguel I, nesta terra de Alvalade, na véspera da partida para o exílio donde não mais voltaria.

É uma iniciativa a vários títulos louvável. Antes de mais  porque evoca um acontecimento marcante da nossa história: o fim da guerra civil e a partida para o exílio de um Rei vencido.
 Não é vulgar evocar os vencidos e os derrotados, mais ainda em guerras fratricidas. Este é por isso, um gesto nobre e generoso, de quem sabe olhar, mesmo de longe no tempo, para um período dramático da nossa história, sem preconceitos, mas com espírito patriótico. 
Porque não foi apenas El-Rei D. Miguel que foi exilado nesse dia 1 de Junho de 1834, mas o povo que com ele se identificava, a tradição portuguesa que ele incarnava e defendia. Quem partiu para o exílio nesse dia, foi uma parte inteira de Portugal que, se foi afastada, nunca deixou Portugal. A pátria ficou no coração dos que partiram, bem firme e enraizada. E os que partiram ficaram para sempre no coração de muitos portugueses, que os recordavam e visitavam, que os ajudavam como se de família própria se tratasse, que suspiravam pelo seu regresso, como se deseja que voltem aqueles que se amam.

O Miguelismo não partiu, ficou, como dimensão natural da cultura popular e da tradição portuguesa. Um pouco à semelhança do Sebastianismo, desenvolvido depois da tragédia de Alcácer-Quibir, o Miguelismo nunca abandonou o imaginário português, para ser amado e cultivado, ou detestado e combatido 1

Não me refiro apenas ao movimento político, ao Partido Legitimista, que perdurou como memória de uma Bandeira de Guerra, ao longo de todo o século XIX, para ressurgir em Portugal nas românticas incursões da Galiza, e para se tentar reconciliar com os adversários seculares nas costas de Dover, numa comunhão de exílios e de desejos de regresso à pátria. Refiro-me também a um espírito, a uma memória de passado projectada em futuro, a um entendimento secular do povo que somos, a uma identidade histórica de raízes antigas. O Miguelismo tornou-se apanágio de “uma maneira antiga de ser português”, transformou-se em saudade, bem portuguesa, de alguém amado que um dia havia de regressar. Tudo isso ficou e perdurou, entranhado na alma da pátria dilacerada pela divisão.

Évora-Monte, Alvalade e Sines são as últimas estações de uma Via-Sacra não apenas de um Rei, mas de um povo antigo e de uma tradição ancestral, que nunca se aceitaram banidos da história, mas antes sonharam com o regresso a um caminho português de futuro.

A Casa do Povo de Alvalade, ao trazer à nossa memória este último percurso de exilados, tem o mérito de nos recordar que a alma do povo não é apagável, que não há modo de banir do futuro da pátria aquilo que fomos, e que sem raízes nunca cresceremos direitos nem permaneceremos de pé, tal como as árvores.

Outro mérito, porém, tem a Casa do Povo ao reunir-nos hoje aqui, para nos fazer reflectir na história que revivemos, para nos proporcionar uma meditação retrospectiva acerca de comos devemos enfrentar as necessidades de mudança. O que estamos a recordar neste momento, passou à história como instauração do liberalismo em Portugal, que não diferiu da forma como se estabeleceu noutros países do sul da Europa, mas que ocorreu de modo bem diverso da implantação da democracia em países onde ela se tornou tradição, como em Inglaterra e por isso mesmo profundamente arreigada e natural.

As guerras civis, transformam-se por vezes, em "guerras internacionais" que ocorrem em determinados países. 

A nossa não escapa a esta categorização. Formada a Quádrupla-Aliança, Portugal e Dom Miguel Capitularam, o liberalismo que saiu vencedor foi, como sabemos um liberalismo importado, um liberalismo conquistado pelas armas e, por isso mesmo, um liberalismo imposto, outorgado, que não se tornou hegemónico, nem brotou espontaneamente da alma do povo e da consciência da pátria, não se tornando por isso popular. O liberalismo foi, como noutros países latinos, um elitismo.

Disse-o lapidarmente Maria Teresa Mónica, historiadora do Miguelismo: 

“A internacionalização do conflito entre os defensores do liberalismo e do “absolutismo” Legitimismo, ditou a derrota destes últimos, sobretudo em Portugal. Aqui, o liberalismo seria implantado através de imposição externa [da Quádrupla Aliança], fácil num pequeno país, periférico, dependente e fraco, já que as forças internas liberais não eram suficientes para lhe dar a vitória. Por isso ficou a pairar a dúvida quanto a quem teria sido o vencedor da guerra civil, se não tivesse havido intervenção estrangeira; permaneceu o trauma de uma invasão espanhola comandada pelo General Rodil; e subsistiu a indefinição, dado o carácter híbrido do tratado de paz entre os dois contendores, liberais e miguelistas, ficando estes últimos sem qualquer protecção” 2.

Consequência desse modo de implantação do liberalismo, mais de fora que de dentro, mais a partir de cima que de baixo, mais através do Estado do que por meio da sociedade, foi sem dúvida a debilidade da nossa sociedade civil e do nosso civismo, de que ainda hoje sofremos as implicações. O tempo do liberalismo passa por ter sido em Portugal o da reconstrução do Estado, não apenas do seu aparelho administrativo e das suas forças armadas, mas da sua prevalência e hegemonia sobre a sociedade.

Esta debilidade da liberdade condicionou a nossa iniciativa económica, a nossa capacidade de inovação, a nossa consciência cívica e nacional, e acabou por moldar a nossa cultura política e social, pouco participativa e responsável pelos destinos colectivos.

O modo de implantação do liberalismo é uma lição para as mudanças do futuro, para as necessárias adaptações aos tempos e às épocas, para vencer os inesperados desafios que sempre se hão-de colocar. É a demonstração de como os custos das revoluções, conduzidas por vanguardas, por vezes estrangeiradas, sem serem acompanhadas pela adesão daqueles a quem se destinam, acabam por ser muito superiores aos benefícios pretendidos, e que nenhuma mudança é tão sólida e duradoura como as que se operam evolutivamente, incorporando a tradição na novidade, renovando o passado no futuro. É a demonstração de que não há incompatibilidade entre a tradição e a inovação, entre a antiguidade e a modernidade, e que as grandes transformações são aquelas que se fazem por incorporação e não por exclusão, e que, desse ponto de vista, não deve haver mais lugar a guerras nem a exílios, mas sim à capacidade de adaptação, ao entendimento negociador e à paz, como processo dinâmico e nunca acabado.

A memória d’El-Rei D. Miguel ficou na história de Portugal de forma desigual: amado por uns, vilipendiado por outros. A distância temporal, permite que hoje, longe dos fragores da guerra e da violência dos conflitos, possamos olhar para esta figura profundamente  portuguesa com maior rigor, e compreender o que representou na sua época desapaixonadamente.

Não é possível entender a figura de D. Miguel sem atender ao contexto internacional saído do Congresso de Viena, e ao contraste que atravessava as nações europeias entre o Antigo Regime e a Revolução.

El-Rei D. Miguel representou por certo a legitimidade e a tradição portuguesa, e a resistência a uma modernização importada, que afrontava os valores radicadas no mais fundo da alma do povo, com que se identificou. Não era tanto a ideia de liberdade que motivava o antagonismo dos miguelistas às hostes de D. Pedro, mas antes a ideia revolucionária da ruptura com as instituições do antigo regime, e em particular da Igreja. Isso mesmo explica a atitude da Santa Sé para com o governo de D. Miguel, bem como o comportamento da grande maioria dos bispos portugueses da época.

“Eis o Rei mais católico que tenho em toda a cristandade” – assim o apresentou Gregório XVI em Roma, em Agosto de 1834 3.

Mais do que o “Absolutismo”, com que António Sardinha se recusava a identificar o Miguelismo 4, o que os seguidores de D. Miguel defendiam eram as instituições tradicionais portuguesas, entre as quais as Côrtes Gerais e os Municípios. 

Dizia Alexis de Tocqueville que “a revolução acabou por realizar, repentinamente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precaução, sem respeitos, o que se teria acabado por realizar pouco a pouco por si ao longo do tempo. Tal foi a sua obra” 5.

O tempo ter-se-ia encarregado de ir substituindo as antigas instituições pelas modernas, sem necessidade das convulsões que acabaram por se dar, se tivesse havido a capacidade de entendimento e de reforma progressiva que faltou.

El-Rei D. Miguel foi um Rei amado pelo seu povo, que o assumiu e venerou. Luz Soriano, historiador maior da nossa Guerra Civil, não hesita em afirmar que a maioria da população era Miguelista 6.


Oliveira Martins assim o descreve:

“D. Miguel e o seu franco plebeísmo eram a genuína expressão do Portugal Velho que, de crises em crises sucessivas, atingia agora a última. O Rei passava, a cavalo, a galope, com a vara entalada na sela, moço e radiante; e agente das ruas parava a adorá-lo, com um ar de júbilo ingénuo nos rostos; os mendigos de uma cidade mendicante avançavam ajoelhando e o príncipe abria a bolsa, dava-lhes dinheiro; as mulheres rezavam, pedindo a Deus a conservação de um rei tão belo, tão bom, tão amigo do povo. 

Corriam pequenos catecismos, orações em que Portugal, repetindo Jerusalém, era o motivo de salmos e antífonas ardentes, invocando-se a Virgem-Puríssima-Nossa-Senhora para que protegesse o augusto e amado rei, defendendo-o de todos os seus inimigos, livrando o reino do pestilento e infernal contágio da seita maçónica… Etc.

Sempre que aparecia em público, Dom Miguel era vitoriado, levado em triunfo, entre bênçãos e aclamações delirantes: de um a vez, passando na Carreira dos Cavalos, caminho de Queluz, achou-se rodeado, sem poder avançar. Eram oficiais do Exército, eram voluntários realistas, eram paisanos, homens, mulheres, gente de todas as idades e classes, que puxando a carruagem o levou em triunfo, entre vivas espontâneos e ardentes, até Val-de-Pereiro. Ninguém dirigia, ninguém ordenava essas festas sem programa, que brotavam como viva expressão do entusiasmo popular. 

Respirava-se o ardor de uma cruzada: Dom Miguel era um Pedro- Eremita. Criava-se uma cavalaria nova e sagrada, para opor à seita maçónica: era a Ordem de São Miguel da Ala de que o Rei tinha o Grão-Mestrado, para defender a Santa Religião católica, apostólica, romana, e restaurar a legitimidade portuguesa” 7.

D. Miguel foi, para além disso, um rei carismático, visto como ungido, investido numa missão histórica e providencial, que se tornou num mito nacional. É ainda Oliveira Martins que nos conta a sua retirada do Porto. “A cada instante parava: eram os velhos, as mulheres com as criancinhas pela mão, que vinham saudá-lo com tristes vivas, rodeando-o, pedindo-lhe a bênção. (…) D. Miguel atravessava as aldeias que o vinham esperar de joelhos, deitando-lhe flores e votos, bênçãos e aclamações” 8.

Se é verdade que é pelos frutos que as árvores se reconhecem, também é pela descendência que melhor podemos medir a grandeza dos Reis. Se o exílio de D. Miguel significou uma fractura dolorosa da Pátria, por outro lado, ele viria a possibilitar uma disseminação de sangue português por muitas casas reais europeias. D. Miguel espalhou Portugal pela Europa. Quem percorrer os rastos d’ El Rei D. Miguel nas cortes europeias não poderá deixar de concluir pela enorme dimensão do seu reinado, que se prolongou muito para além dos anos em que governou. Muitos são os descendentes d’El-Rei D. Miguel dispersos pela  Europa, como muitos são os descendentes de D. Miguel presentes em Portugal, e que hoje quiseram estar aqui num gesto de perdão e de reconciliação.

S.A.R. o Senhor Duque de Bragança, e Seu filho o Príncipe da Beira, descendentes simultaneamente de El-Rei D. Miguel e de D. Pedro I do Brasil, são hoje a personificação do desejo que não volte a haver Liberalismo em Portugal nem guerras civis, nem Reis legítimos condenados ao exílio ou desterro, mas que a pátria possa ser Restaurada através da verdadeira Monarquia Tradicional Portuguesa. »

Assim Deus o permita! Por Deus, Pátria, Foros e Rei legítimo. SEMPRE!!!


1 Disse-o também Oliveira Martins: “O sentimento de encanto e mística esperança que o povo deu a D. Sebastião, reaparecia agora a favor de D. Miguel” (I, p. 293)
2 Teresa Mónica, Errâncias miguelistas, Lisboa, Cosmos, 1997
3 Citado por Fernando Campos, O pensamento contra-revolucionário em Portugal, Lisboa, 1931, II, p.25
4 António Sardinha, Teoria das Côrtes Gerais,
5 L’Ancien Regime et la Revolution, p.31
6 Luz Soriano, História da Guerra Civil, citado por Teresa Mónica, Errâncias miguelistas, Lisboa, Cosmos, 1997
7 Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Lisboa, vol. I, pp.119-120
8 Ibidem,vol.I, pp.339-341

 Manuel Braga da Cruz

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Carta aberta ao Senhor Príncipe da Beira - Pelo Prof. Doutor António José de Brito

CARTA ABERTA AO SENHOR PRÍNCIPE DA BEIRA

            Li, num boletim que, por antífrase, se chama Consciência Nacional, a suculenta Mensagem em que V. Ex.ª principia por manifestar o seu «inteiro apoio ao Movimento das Forças Armadas» e a «plena adesão ao seu Programa», expressando a seguir um abrasado amor à «instauração de uma verdadeira e consciente democracia, saneamento da vida pública e solução do problema do Ultramar no mais estrito respeito pelos inalienáveis direitos da pessoa humana».

            Notamos, em primeiro lugar, que a V. Ex.ª interessa-lhe, de forma primordial, na solução do problema do Ultramar, o respeito pelos inalienáveis direitos da pessoa humana, em vez de o preocuparem, acima de tudo, os inalienáveis direitos de Portugal aos seus territórios de África e Ásia.
           
Isto permite-nos, já, formular um juízo sobre a posição de V. Ex.ª do ponto de vista do interesse do país.

            V. Ex.ª, no entanto, para nos esclarecer melhor ainda, dissipando qualquer dúvida, proclama, com entusiasmo, «urbi et orbi», que «os princípios de dignidade da pessoa humana, justiça social, liberdade, pluralismo político e participação de todos nas decisões (...) não podem ser ofendidos (...) sem grave prejuízo para o futuro da nossa pátria comum».

            Portanto, no douto entender de V. Ex.ª, a nação são os dogmas da Revolução Francesa. Atacar os chavões demo-liberais, é prejudicar a pátria comum. Mas, em contrapartida, a obra política secular desenrolada no decorrer dos tempos, a unidade soberana pluricontinental superior aos indivíduos e aos grupos, essa pode ser ou estar a ser mutilada, cindida, destruída até, que V. Ex.ª não se indigna nem protesta. O que o preocupa é que a pessoa humana esteja contente.

            Em todo o caso, a atitude de V. Ex.ª, neste particular, não possui grande originalidade, restringindo-se a seguir o modelo geral.

            Quem não é, hoje em dia - salvo um punhado de abencerragens - perfeitamente indiferente aos destinos de Angola, Moçambique e Guiné, e não dedica o seu melhor fervor a entoar loas à democracia e à pessoa humana?

            Acresce que V. Ex.ª, descendente dos Reis que fizeram Portugal, se limita tão-só a aplaudir os que o procuram dissolver.

            Os protagonistas activos dessa dissolução são outros, que juraram, não sei quantas vezes, dar a vida pela pátria e, por profissão e vocação, deviam ser os intransigentes defensores das suas fronteiras.

            V. Ex.ª não é senão um membro do coro, não um actor da tragédia. Nela o seu papel - desculpe V. Ex.ª que lho diga - é extremamente secundário, conquanto que assaz pouco honroso.

            Em todo o caso, V. Ex.ª não se contenta com uma mera exibição de pathos democrático, fenómeno actualmente corrente e vulgar em extremo. V. Ex.ª produz uma asserção que merece ser analisada com imenso cuidado e suscita um pouco de perplexidade.

            Declara V. Ex.ª abertamente: «Reitero o meu propósito de que o nome monárquico não seja utilizado em contradição com os princípios de dignidade da pessoa humana, justiça social, liberdade e pluralismo político, participação de todos nas decisões», a que há pouco fizemos referência.

            Eu começo por pedir, humildemente, perdão a V. Ex.ª.

            V. Ex.ª diz que reitera o seu propósito (ou melhor, o seu despropósito). Excluindo a hipótese de que V. Ex.ª, apenas ao chá e entre amigos, tenha manifestado o intento de impedir que o termo monárquico seja associado a opções antidemocráticas, a triste verdade é que desconheço outro documento público de V. Ex.ª em que V. Ex.ª formulasse tão curiosa determinação. Releve V. Ex.ª a minha imperdoável ignorância.

            Se eu tivesse tido conhecimento do propósito (ou do despropósito) de V. Ex.ª, não iria esperar que V. Ex.ª o reiterasse para lhe dirigir esta carta aberta. Tê-lo-ia feito nessa mesma ocasião.

            Apresentadas as minhas escusas, pergunto, muito reverentemente - a que título resolveu V. Ex.ª formular a sua tão elegante e garbosa cominação?

            Julga V. Ex.ª que na qualidade de Príncipe da Beira tem autoridade suficiente para tal?
            V. Ex.ª, todavia, é um mero herdeiro do trono. Se por milagre, graças a um 25 de Abril ao contrário, a Monarquia fosse restaurada, suponho que V. Ex.ª não ignora que a dignidade de Rei pertenceria, não a V. Ex.ª, mas sim a seu Augusto Pai. Ora são os Reis, e não os herdeiros do trono, que podem ditar imperativos e regras.

            V. Ex.ª, como Príncipe, não tem ainda qualquer espécie de Poder.

            Em relação a V. Ex.ª nem se chega a pôr o problema da legitimidade dos monarcas e do seu eventual direito de obrigarem os súbditos a acatarem e apoiarem a democracia.

            V. Ex.ª não possuindo, para já, nenhuma espécie de título de soberania (mesmo meramente de jure), é por inteiro descabido discutir se está em posição de dirigir ordens soberanas, categóricas e inelutáveis, a quem quer que pretenda utilizar o vocábulo monárquico contrapondo-o às teses liberalistas, personalistas e quejandas.

            Enquanto simples Príncipe da Beira - a quem o Senhor D. Duarte não delegou nenhuma parcela dos seus privilégios reais - não tem V. Ex.ª, rigorosamente, nenhuma autoridade própria para impedir que usemos a palavra monárquico qual antítese perfeita de democrático.

            Nestas circunstâncias, de que maneira pretenderá V. Ex.ª dar execução ao fino propósito (ou despropósito) que enunciou?

            Pensa V. Ex.ª dirigir-se ao Movimento das Forças Armadas, de que é caloroso admirador?

            Tenciona V. Ex.ª constituir o P.P.M. com o Sr. Barrilaro Ruas à frente, em hoste aguerrida que avance e aplique sanções físicas a quem tenha a ousadia de declarar-se monárquico e, por isso mesmo, adversário do pluralismo político, da liberdade, etc.?

            Tencionará V. Ex.ª fundar e chefiar um agrupamento cujo programa de governo seja a oposição entre Monarquia e anti-democracia?

            Ou pretenderá V. Ex.ª tão-só cingir-se ao plano dos argumentos, das reflexões, das digressões ideológicas? Numa palavra, o propósito (ou o despropósito) de V. Ex.ª será o de um puro doutrinador?

            V. Ex.ª, arvorado em pensador, ter-se-á limitado à enunciação da verdade que irá presidir ao seu combate no domínio intelectual e especulativo?

            Parece-me que isto é o que tem mais verosimilhança. Para programa de governo o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª é assaz escasso, não sendo crível que V. Ex.ª fantasie que, nessa base, vai conquistar sufrágios e adeptos que o transportem às cadeiras bem-amadas de S. Bento.

            Por outro lado, não acredito que, com o seu anti-totalitarismo visceral, V. Ex.ª pretenda recorrer a métodos de violência, nem que V. Ex.ª se julgue Rei - se não de facto ao menos idealmente - dando o seu progenitor por falecido.

            V. Ex.ª, creio, envereda unicamente pelo caminho da filosofia do Estado. E seja benvindo!

            Simplesmente, o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª, nesse domínio, não pode ser aceite à confiança, como um dogma. É preciso examiná-lo criticamente, à luz da razão, para verificar a sua consistência e validade.

            Talvez V. Ex.ª suponha que ele constitui evidência inconcussa que, assim, não precisa de análise ou justificação. Eu não vejo, porém, essa evidência, e comigo a esmagadora maioria dos escritores que, em Portugal, se bateram pela Monarquia.

            Desde os apologistas do miguelismo até Alfredo Pimenta, passando pelos integralistas dos tempos áureos, os teóricos da Realeza foram antidemocratas porque monárquicos.

            É claro que eu faço a justiça a V. Ex.ª de acreditar que nunca pôs a vista na obra desses autores, que nunca se deu ao trabalho de percorrer as páginas dos Penalva, dos Gama e Castro, dos Sardinha, ocupado sem dúvida por tarefas mais urgentes, como ler o Expresso, a Consciência Nacional, o Programa das Forças Armadas e outros textos imortais.

            Não serei eu que censure V. Ex.ª por tão virginal ignorância, que só prova que o alto espírito de V. Ex.ª não foi corrompido por concepções anteriores ao 25 de Abril.

            De qualquer modo, uma evidência que um intelecto de boa-fé não consegue ver, imediata e claramente, é já uma evidência que suscita e requere alicerces. Dir-lhe-ão que devia ver com imediatividade e clareza tal evidência?

            Ele, por seu turno, perguntará: - «e porquê?», dando-se com isso início ao processo dialéctico de controvérsia. Uma evidência em si, que não é evidente para todos, necessita de autofundamentar-se para se impôr, logicamente ao menos, àqueles que não a reconhecem. E, nesse momento, renasce o problema das análises e justificações.

            Por conseguinte, o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª - mesmo que se lhe atribua o carácter de evidência em si - não pode escapar ao exame crítico da razão, que lhe fixará a eventual consistência e validade.

            É este o ponto fulcral da matéria. O propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª é válido e consistente? That is the question.

            Para que se não deva utilizar o nome monárquico em contradição com a liberdade, o pluralismo político, etc., ou seja, em contradição com os ideais democráticos, torna-se indispensável:
            
            a - que a Monarquia seja compatível com os referidos ideais;

            b - que a Monarquia não possa ser compatível com nada de antidemocrático.

            Se a Monarquia não fôr incompatível com a democracia, mas também não fôr incompatível com a antidemocracia, é óbvio que o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª não possui razoabilidade. A Monarquia será uma espécie de massa moldável a todos os gostos, concebendo-se tanto monarquias democráticas como monarquias antidemocráticas.

            Durante alguns anos foi-nos apresentada a imagem «não ideológica» da Monarquia, qual regime em que cabiam, quer orientações de esquerda avançada, quer de extrema-direita.

            A Monarquia seria assim - perdoe-me V. Ex.ª o plebeísmo - pau para toda a colher.
            V. Ex.ª, honra lhe seja, repele semelhante atitude. Na opinião de V. Ex.ª, a Monarquia só serve para a colher democrática, para a pessoa humana, para a liberdade. Daí que V. Ex.ª sustente que não se possa usar a palavra monárquico em sentido antidemocrático.

            Unicamente sucede que, se a Monarquia não fôr compatível com a democracia, o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª encontra-se ab inicio refutado. V. Ex.ª muito lastimavelmente, esqueceu este problema preliminar, de cuja solução depende que se possa declarar - conforme faz V. Ex.ª - que monárquico e antidemocrático são noções que se excluem.

            Examinemos, pois, Ex.mo Senhor, se, por acaso não começa por haver uma antinomia abissal entre a Monarquia e o ideal democrático.

            O assunto foi tratado, desde longa data, em especial desde a publicação de um jornal denominado Diário Nacional, feroz defensor da tese de compatibilidade entre monarquia e democracia, em que pontificaram doutrinadores ex-antidemocráticos acérrimos.

            Houve, por altura da aparição desse vespertino, polémicas acesas, que não vale a pena estar a referir aqui, embora tivessem longa e duradoira repercussão.

            Não quero, porém, estar a incomodar V. Ex.ª com pormenores históricos, duma história ainda bem viva para mim que fui dela obscuro protagonista, mas, para V. Ex.ª, de certo quase tão distante como a Guerra de Tróia ou o cerco de Cartago.

            Vou esforçar-me por abordar as relações da possível, ou impossível, coexistência entre Monarquia e Democracia, de uma perspectiva estritamente teórica.

            Não sei se V. Ex.ª desconhece que existiu no passado, em vários lugares e ocasiões, um regime em que a autoridade suprema pertencia vitaliciamente a um homem só e era transmitida, hereditariamente, de pai para filho. Regime de poder pessoal, em que o chefe era verdadeiramente chefe, por muitos órgãos consultivos que o rodeassem, e exercia uma soberania indiscutível sobre as correntes de opinião, as multidões, os poderosos.

            Regime que, com mais ou menos transformações, esteve vigente em Portugal até à data fatídica de Évora Monte, em que D. Miguel I foi expulso pelos entusiastas da pessoa humana da época.

            Talvez V. Ex.ª não ignore quem foi D. Miguel I, e os sacrifícios que fez, exactamente para não pactuar com a democracia e o liberalismo, o calvário que foi o seu exílio na pobreza, para não sacrificar a honra, a longa fidelidade do povo à sua memória, o exemplo que a sua actuação representou.

            Ou talvez V. Ex.ª ignore tudo isto, porque não consta do programa do Movimento das Forças Armadas.

            Pouco importa!

            O que é incontroverso é que houve também, mais ou menos até 1789, em França, na Itália, na Alemanha, regimes perfeitamente análogos ao que desapareceu do nosso País com a expulsão de D. Miguel. Tais regimes foram, unanimemente, designados por Monarquia por toda a gente, a principiar pelos cientistas da política. E não há dúvida que se tratava de designação que correspondia, com rigor, ao significado normal da palavra ligado à etimologia.

            Sem dúvida, eu posso designar por monarquia uma cadeira e, dado que sou um explorador do povo consciente e organizado, bradar para a minha empregada doméstica: «Oh Maria, coloque a monarquia ao pé da mesa, se faz favor». Não vislumbro, contudo, nenhuma espécie de benefício em usar um vocábulo de maneira que só possa contribuir para que ninguém se entenda. Se ao objecto cadeira se costuma chamar cadeira e ao regime político em que só um governa, soberanamente, se costuma chamar monarquia, para que havemos de baptizar as cadeiras de monarquias e as monarquias de cadeiras? Os respectivos objectos nem por isso se identificam e apenas as mentes pouco informadas ficam por completo confundidas.

            Eu não desconheço, é óbvio, que são igualmente classificados de monárquicos certos sistemas que nada têm que ver com o regime que, sumariamente, descrevi - é o que se passa na Inglaterra, na Suécia, etc.

            Aqui o nome, todavia, é simples vestígio. Outrora existiram nesses países autênticas monarquias que foram substituídas por estruturas políticas diferentes, conservando-se a designação antiga por inércia.

            Isso não impede que, entre as constituições inglesa ou sueca actuais e as de Portugal no reinado de D. João II ou da Espanha no reinado de Filipe III, haja um abismo, não se patenteando qualquer vantagem em se denominar com a mesma palavra realidades inteiramente diversas e opostas.

            Se A é monarquia, não A não é monarquia ainda que assim o rotulem.

            Admitiríamos que o termo monarquia fosse usado se não houvesse outro para designar essas entidades políticas incompatíveis entre si. Mas se o certo é que, para caracterizar os regimes inglês ou sueco, o vocábulo adequado, etimologicamente até, é democracia, porque motivo os vamos proclamar monarquias?

            No plano da tipificação das instituições é patente que monarquias são os regimes do poder pessoal e hereditário de um só, e democracias os regimes ao estilo britânico em que o mando pertence ao conjunto das pessoas através do mecanismo do voto, dos partidos, dos órgãos de opinião, etc.

            Que aos últimos se chame, por vezes, monarquias também, deve ser encarado como um erro explicável por razões de conservantismo linguístico - há séculos Inglaterra e Suécia foram monarquias genuínas -, irrelevantes numa perspectiva de pensamento doutrinário.
            Claro que eu não posso impedir que haja cavalheiros que se declarem, simultâneamente, democráticos e monárquicos, tal como há aqueles que procuram a quadratura do círculo.
            Simplesmente eles dizem-se monárquicos mas não são monárquicos, porque se o fossem, a sério, não poderiam ser democráticos.

            Efectivamente, pluralismo político, liberdade, dignidade da pessoa humana, participação de todos nas decisões, não são conciliáveis com o poder pessoal de um só.

            Se um só manda, a pessoa humana está-lhe subordinada, a liberdade é substituída pela obediência, o pluralismo é superado pela unidade e em vez de participação de todos nas decisões é o governante único que decide.

            Há, assim, uma incompatibilidade flagrante entre democracia e monarquia que impede que se possa ser, a um tempo, adepto duma e doutra.

            No entanto, assente a antinomia entre monarquia e democracia, já é impossível aceitar o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª, de que o termo monarquia não seja empregue em contradição com os dogmas democráticos.

            O contrário é que se mostra verdadeiro. Embora nem sempre assim se proceda, devemos empregar a expressão monarquia como a firme antítese da mitologia democrática.
            V. Ex.ª, num progresso notável na senda do paralogismo, não se contenta em pôr de lado a oposição inabalável que existe entre monarquia e democracia. V. Ex.ª pretende, mais ou menos directamente, que, ao invés, só há oposição entre monarquia e anti-democracia.
            A respeitarmos o propósito (ou despropósito) de V. Ex.ª seríamos forçados a reescrever a História.
            Os historiadores e também os constitucionalistas, estariam completamente equivocados ao considerarem os regimes de, por exemplo, Luís XIV, José II, Frederico o Grande, como monarquias, posto que tais regimes estão em contraposição com a democracia.
            As monarquias principiaram a partir, mais ou menos, de 1789. Em 1917 a monarquia russa não teria sido derrubada; depois dessa data é que surgiriam enfim possibilidades de instauração da Realeza em semelhante nação.
            Permita-me V. Ex.ª que lhe declare que tão sublimes pontos de vista não me convencem nem convencem ninguém de bom-senso.

            Quem é que em seu juízo perfeito admitirá que, no tempo de Carlos III, não existia em Espanha uma monarquia?

            E se existia, então a democracia não é a monarquia porque democracia é oposto de uma situação política dessa natureza. Logo, é o absurdo dos absurdos pretender que a monarquia não deve ser antidemocrática.

            A monarquia não pode ser senão anti-democrática se fôr a monarquia a valer e não a pseudo-monarquia.
            Não sou eu, nem o Sr. Y ou Z, quem impõe tal conclusão. É a razão, é o raciocínio, contra os quais embate o querer de V. Ex.ª. V. Ex.ª não fará com que a monarquia seja democracia, como não conseguirá que o todo seja parte, ou o infinito finito. Nem Deus o conseguirá.
            Se V. Ex.ª é um fervoroso da democracia, isso só prova que V. Ex.ª não é monárquico e que, na melhor das hipóteses, ignora tudo acerca da essência mesma da Realeza.
            Suspeito que V. Ex.ª  talvez alimente o projecto de, quando chegar a ser Rei de direito, converter em determinações reais os seus propósitos (ou despropósitos) de agora. Acaso V. Ex.ª imagine que nos meterá, a nós, monárquicos autênticos, logo antidemocráticos, entre a espada e a parede.

            Se somos monárquicos temos de obedecer ao Rei e de nos fazermos democratas e, se não nos transformamos em democratas, eis que desobedecemos ao Rei e deixamos de ser monárquicos.

            Cumpre-me observar, respeitosamente, a V. Ex.ª, que nem V. Ex.ª nem Rei algum tem capacidade para formular imperativos dessa índole.

            Quanto ao funcionário que, em certas democracias, se denomina Rei, é óbvio que lhe escapa toda a competência para ditar ordens soberanas e, por conseguinte, em relação a ele, não podem surgir dificuldades do género da que apontamos.

            Mas em relação a um Rei autocrático já não surgirão? Um Rei autocrático não poderá ordenar que sejamos democratas?

            Claro que não, porque:
            
            1.º - Um Rei autocrata não é democrata e se não é democrata não pode ordenar a adesão à democracia;

            2.º - um Rei autêntico que adira repentinamente à democracia (e torne a democracia obrigatória para os súbditos) deixa de ser Rei, ipso facto, porque nega a própria razão de ser da sua posição de Rei; é qualquer coisa de comparável a um Papa ateu que pretenda, em nome do catolicismo, que os católicos lhe obedeçam quando os manda ser ateus.

            De resto, V. Ex.ª não quererá, nem por sombras, ser um Rei autocrático, isto é, Rei a valer.
            Se alimenta, de facto, o projecto que lhe atribui - e quiçá não o faça -, não sei de que maneira o poderá pôr em execução sem negar as suas convicções de democrata impoluto.
            É certo que V. Ex.ª é um partidário caloroso da participação de todos nas decisões. E, no entanto, nós não participamos na sua decisão de que o termo monárquico não seja utilizado em contradição com o ideário democrático.

            V. Ex.ª, portanto, não tem grande hábito de ser coerente consigo próprio.

            Não é isso, porém, o que mais importa.

            V. Ex.ª é incoerente em relação à monarquia e ao título que usa. E, isso sim, interessa sobremaneira.

            Um Rei apologista da democracia é um Rei que imediatamente abdicou.

            Não se trata aqui de resolvermos reconhecer ou não alguém como Rei. Trata-se de que um Rei democrata não é Rei, do mesmo modo que o triângulo não é pentagonal.

            Também nesta altura mandam a lógica e o raciocínio, e contra eles esbarram a vontade de V. Ex.ª ou das massas desenfreadas que hoje se auto-intitulam de povo.

            Continue V. Ex.ª a adular essas massas e fique-se com os seus P.P.M`s, com a pessoa humana, com o seu pluralismo, com o seu caridoso amor às depurações (ao saneamento, conforme escreve V. Ex.ª), com toda a mitologia cem vezes refutada mas, nos nossos dias, triunfantes pela força, que eu, por mim, quedo-me isolado e solitário com o que mais importa - a verdade política.

            Passe V. Ex.ª bem e, de acordo com os seus princípios, tenha muita saúde e, sobretudo, muita fraternidade.


António José de Brito.

            
P.S. - Não trato V. Ex.ª por Alteza Real com receio de ferir os seus sentimentos de amor aos costumes democráticos.
            Bem basta - e a minha desculpa está em seguir o exemplo da actual Consciência Nacional - chamar-lhe Príncipe da Beira sem que o sufrágio universal se tenha pronunciado sobre tal designação.


Agosto de 1974.